Lula é presidente! E agora, mulheres?

Por Coletivo Mulher Vida

A cientista política Rayza Sarmento dá um panorama breve dos direitos das mulheres no Brasil a partir de janeiro
Ana Carolina Araújo
2 de novembro de 2022 (Atualizado em 2 de novembro de 2022)

Este texto foi publicado originalmente na newsletter Elas no Congresso, que monitora os direitos das mulheres no legislativo brasileiro e envia toda segunda-feira análises exclusivas como essa. Ela é gratuita. Para assinar, clique aqui.
Nós, mulheres, ainda estamos comemorando o fato de chegar inteiras (há controvérsias) à vitória do último domingo, com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não estamos no Mundo de Alice, e sabemos que tem muita luta pela frente em busca dos direitos das mulheres. Entretanto, é muito bom saber que serão batalhas disputadas no campo da democracia e da justiça.
Para falar um pouco sobre isso, convidamos Rayza Sarmento, doutora em Ciência Política pela UFMG, professora da UFPA e integrante do Comitê de Gênero, Raça e Diversidade da Associação Brasileira de Pesquisadores de Ciência Política (ABCP). Ela nos deu um panorama breve dos direitos das mulheres no Brasil a partir de janeiro de 2023.

CONFIRA!
Revista AzMina: O que as mulheres podem esperar desse novo governo Lula? Avanços ou mais do mesmo?
Rayza Sarmento:
Há uma expectativa de avanços reais quando observado o Plano de Governo, mas especialmente quando olhamos para trás e vemos o que foi conquistado nos governos petistas, tanto com Lula quanto com Dilma, no que concerne aos direitos das mulheres. Uma necessidade urgente é retomar, recriar e fortalecer a Secretaria de Política para as Mulheres, com status de ministério. Isso precisa ser feito a partir de uma perspectiva crítica de enfrentamento à desigualdade de gênero, e não num modelo focado apenas em critérios que chamamos de familistas, como aconteceu na gestão de Damares Alves. Quando o debate dos direitos das mulheres é convertido em um debate sobre a preservação de um único modelo de família, conforme feito no atual governo, pautas como o combate à violência ou autonomia financeira são marginalizadas.

AZ: Que posicionamentos de campanha podem ser uma armadilha na discussão sobre gênero?

RS: Entendo que Lula precisa se posicionar efetivamente por um ministério paritário entre homens e mulheres, além da pluralidade na composição racial. Não ter respondido de forma transparente a essa questão, quando outros países da América Latina, como o Chile, já sinalizaram essa importância, pode ser negativo para o governo.

AZ: Numa perspectiva interseccional da luta por direitos, que pontos exigem ações urgentes?

RS: No cenário atual, de tantos retrocessos aos direitos das mulheres, é difícil enumerar quais pontos pedem atenção imediata, mas gostaria de chamar atenção para alguns. Para além do aumento do número de mulheres, em especial de mulheres negras, na composição do governo, me parece que algumas pautas que precisam de ações urgentes são: 

1) a feminização da pobreza no Brasil dos últimos anos precisa de políticas públicas específicas, em especial quando olhamos o número de domicílios chefiados por mulheres. Aqui a discussão sobre transversalidade de gênero é fundamental, pois passa pela forma discussão de orçamento, desenho de políticas de redistribuição de renda e reflexão sobre mercado de trabalho; 

2) o fortalecimento  da rede de enfrentamento à violência doméstica, da Lei Maria da Penha, em parceria com os governos estaduais, em especial nos estados em que essa rede se encontra mais fragilizada com a redução do orçamento; 

3) o aumento do provimento público de creches para crianças, junto da problematização mais forte sobre as tarefas do cuidado. Isso sobrecarrega as mulheres, em especial de baixa renda; 

4) a violência obstétrica, em especial quando se olham os dados referentes às mulheres negras, é uma agenda urgente. É um problema crescente nos últimos anos, e que ainda não teve uma resposta efetiva.

AZ: Como o presidente Lula poderá lidar com o Congresso eleito, muito conservador?

RS: O conservadorismo do Congresso será, mais uma vez, um entrave para o debate de pautas como o direito ao aborto, direitos sexuais e reprodutivos. Não há dúvidas. Mas me preocupa muito que se avance também na defesa do ensino domiciliar, o homeschooling. Essa defesa impacta decisivamente a vida das mulheres, sobretudo as de camadas periféricas, pois retira do Estado o provimento educacional, priva crianças e adolescentes da socialização fundamental feita pelo ambiente escolar e recoloca sobre as famílias, com ênfase nas mulheres, a responsabilidade de educação. Estamos vivendo um processo de tentativa de reprivatização dos direitos das mulheres diante do avanço do conservadorismo não apenas no âmbito da representação política, mas das nossas sociabilidades. A eleição de mulheres conservadoras indica uma aproximação do eleitorado feminino com essas agendas.

AZ: Como superar o retrocesso do debate de gênero nos últimos anos?

RS: Os eixos onde o debate político sobre gênero e outras desigualdades aconteceram nos últimos anos não mudarão a curto prazo. Representantes políticos eleitos/as para o Legislativo com essas agendas tenderão a amplificar ainda mais essas discussões (na maioria das vezes a partir de fake news), baseadas em uma construção de papéis de gênero como assunto privado e não coletivo, bem como da expressão de sexualidades. 

Tornar debates que são políticos e públicos, como a defesa do próprio corpo ou de uma vida livre sem violência, como temas de cunho privado e moral, é uma estratégia discursiva das direitas em todo o mundo. O recado de um ministério paritário pode ser um caminho bem importante nesse debate. Discursivamente, Lula precisa mostrar uma postura diferente da forma misógina como Bolsonaro se referiu a meninas e mulheres nesse país, a congressistas e a jornalistas. A não tolerância e concordância do chefe máximo do Executivo com essas violências é um (re)começo importante para a reconstrução do país.

Fonte: https://azmina.com.br/reportagens/lula-e-presidente-e-agora-mulheres/